Talvez cause estranheza a muitos a afirmação que a Caridade é apenas uma
espécie do Bem. Acostumamo-nos a pensar nela como qualquer bem realizado. Sem
nenhuma distinção adicional. Uma leitura atenta das obras básicas, no entanto, nos
demonstra o contrário.
Como, então, podemos definir a Caridade? O que efetivamente a caracteriza?
Vejamos o seguinte: não podemos negar que muitas ações realizadas pelas pessoas, nas
suas interações com o mundo físico e social, têm como consequência um bem, seja para
outrem, seja para si mesmas. Todavia, podemos daí afirmar que todas as espécies de
bem são Caridade? Se não, qual será a diferença? Para explicar melhor daremos dois
exemplos simples:
(1) Digamos que um estudante universitário que passa por problemas financeiros
ao observar as dificuldades de aprendizado de um colega de aula que tem uma irmã
muito bonita e desimpedida para relacionamentos afetivos, resolva ajudá-lo, dando-lhe
lições sobre o conteúdo que o colega desconhece, mas para isso nada cobra dele; ensina
tudo o que sabe pela pura satisfação de ver o colega aprender o conteúdo e ser
aprovado.
Digamos agora que: (2) outro estudante universitário que enfrenta os mesmos
problemas financeiros, vendo as dificuldades de aprendizado do colega, resolva ajudá-lo,
e também nada cobre, mas lhe ensina somente com o objetivo de angariar a sua amizade
para poder aproximar-se da irmã dele para conquistá-la.
Nestes exemplos observamos uma semelhança e duas diferenças. Em ambos os
exemplos o resultado final foi um bem: o universitário em dificuldades recebeu as lições
que necessitava. Quanto às diferenças vemos que, no exemplo 1, o estudante realiza a
sua ação benéfica sem buscar vantagens para si; seu único objetivo é ver o colega ser
aprovado. Já no exemplo 2, o universitário também realiza uma ação benéfica, mas o
sentimento que o move não é o de ver o colega ser aprovado; o que ele deseja é
simplesmente usá-lo como meio para aproximar-se de sua bela irmã. O elemento de
diferenciação entre ambos é que o primeiro produz um bem com desinteresse pessoal,
enquanto o segundo também produz um bem, mas com interesse pessoal. O segundo
elemento de diferenciação é a intencionalidade. No exemplo 1 o universitário quer
produzir um bem para outro, enquanto no exemplo 2, o universitário quer produzir um
bem para si mesmo, usando o colega apenas como um instrumento para atingir os seus
objetivos. Temos assim suas finalidades essencialmente diferentes. No exemplo 1 a ação
é autotélica, isto é, a intenção do agente é produzir um bem para outrem; a finalidade é o
bem pelo próprio bem. No exemplo 2, a ação é heterotélica, ou seja, a intenção é produzir
um bem apenas como meio para a obtenção de outra finalidade.
Para definir a Caridade usemos a lógica formal. Esta ensina que a espécie é
definida pelo gênero e pela diferença específica. Por exemplo, sabemos que o Homem é
um animal racional. A animalidade é o gênero, e a capacidade de pensar, a racionalidade,
é a diferença específica, ou seja, algo que existe somente nele e não nos outros animais.
No caso da Caridade, e pelos exemplos apresentados, notamos que o gênero é o Bem e a diferença específica é o “desinteresse pessoal”. Nossa definição, então, é a seguinte:
Caridade é a operação desinteressada cujo fim é o bem de outrem.
O que está inerente a estas duas posições quanto à finalidade é o sentido que se
dá à intenção. É por este motivo que tanto os Espíritos da codificação quanto o próprio
Kardec colocam o desinteresse pessoal como elemento central da Caridade. Assim, a
Caridade é ação cuja finalidade é o Bem, mas realiza este Bem sem buscar
primeiramente o bem do agente, daquele que a realiza. Em outras palavras, o agente não
quer obter nenhuma vantagem para si mesmo, em primeiro lugar dessa ação.
Convém, agora, esclarecer o significado de interesse e desinteresse para que
formemos um entendimento mais completo da questão da Caridade. O interesse ou
desinteresse implicam a intencionalidade, isto é, a intenção dirigida para algo.
Os dicionários vulgarmente definem interesse como a vantagem, utilidade ou o
proveito que alguém obtém de algo, para si mesmo; pode ser um ganho qualquer,
favores, dinheiro, rendas, promoção pessoal, apreciação pública, uma função ou um
cargo, uma melhor posição social ou profissional, ou como uma relação de reciprocidade
entre um indivíduo e um objeto que corresponde a uma determinada necessidade
daquele. Interessado é aquele que tem interesse em alguma coisa. O desinteresse,
portanto, é o contrário do interesse, ou seja, no desinteresse não se busca alcançar
nenhuma vantagem, utilidade ou proveito pessoal. É necessário, no entanto, não
confundir o desinteresse com a indiferença, pois são coisas absolutamente distintas.
Assim, a pessoa desinteressada é aquela que age sem a intenção de obter qualquer
vantagem para si mesma, mas, sim, busca o Bem para outrem; significa dizer que é uma
ação autotélica.
Na acepção filosófica, a ação desinteressada é aquela que tem por finalidade a
produção do bem pelo próprio bem. A pessoa desinteressada será, então, aquela que
produz o bem para obter como resultado, como finalidade, o bem, não para si mesma,
mas para outrem. O interesse é, por sua vez, algo que tem um fim fora de si mesmo. Isto
quer dizer que o bem é apenas um meio para outra finalidade, para obter isto ou aquilo.
Assim, a pessoa interessada é aquela que pratica o bem como meio para atingir
finalidades outras, mas que redundem em bem primeiramente para si mesma, e somente
residualmente para outrem, se sobras houver e quando houver.
Algumas dúvidas sempre afloram à mente de quem reflete sobre esta questão da
intencionalidade. Será que aquele que faz o Bem sabendo que este bem terá uma
consequência positiva para si mesmo está, dessa maneira, agindo desinteressadamente?
Ora, como o desinteresse pessoal é central para a Caridade, e desinteresse quer
dizer que a intenção de um agente em promover o bem para o outro é o fator principal e
não o conhecimento da possibilidade de resultados positivos para o agente advindos da
sua ação, inferimos que o que importa neste caso é a intenção, que foi de produzir um
bem para outrem, e o fato de saber que haveria um resultado positivo para si mesmo não
anula esta intenção. Portanto, ter conhecimento dos efeitos secundários de uma ação não
constitui interesse pessoal.
Esta dúvida, que poderia causar interpretações equivocadas para a conceituação e
a prática da Caridade, foi antevista por Kardec, e colocada na forma de questionamento
(questão 897, 897 a, e 897 b, de “O Livro dos Espíritos”) aos Espíritos da codificação.
Por fim, podemos afirmar, com base nos ensinos dos Espíritos e de Allan Kardec,
que a Caridade é um Bem, mas não qualquer Bem. Para ser Caridade este Bem deve
atender primeiramente ao critério do desinteresse pessoal. Certamente, todo Bem é
necessário, mas somente o Bem que é produzido sem intenções de vantagens pessoais,
ocultas ou não, é que pode ser chamada de Caridade. Portanto, a Caridade, no sentido
que o Espiritismo lhe dá, é uma das espécies de Bem que o ser humano pode produzir,
no entanto, é o único bem que pode libertá-lo do próprio egoísmo.
Ivomar Schuler da Costa – A Caridade uma espécie de bem
– O Consolador – Nº 442 – 29/11/2015
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